Gotinha na calçada

Eu morava na mesma cidade, no mesmo bairro e na mesma rua que ela desde quando nascemos. Ela estudava na mesma escola, na mesma série e na mesma sala que eu desde que entramos no jardim de infância. E desde então, passávamos quase todas as tardes brincando com nossos amigos, na rua, bem em frente da casa dela, porque era o trecho da rua por onde passavam menos carros. Pega-pega, pique, bola, corrida, figurinha, brinquedo, tudo. Tudo tinha a sua hora na nossa rua. Inclusive, a hora de ir embora. A mãe dela aparecia na porta e gritava: - Niiiina! Hora de ir para caaaasa! - Já vou, mãe! E então ela se despedia da gente. Olhava para mim e dizia: - Te vejo amanhã, Bob? - Hu-hum! Te vejo amanhã! - respondia. Entretanto, nem sempre era assim. As vezes estávamos cansados demais para brincar, ou simplesmente estávamos desanimados. O bom é que nessas horas sempre tinha a calçada, onde a gente se sentava para conversar, descansar ou brincar no chão. E foi numa dessas vezes que ela veio dizer algo que eu nunca vou esquecer: - Pessoal, eu vou embora. - Eu sei. Ouvi sua mãe te chamar. Te vejo amanhã, Nina. Ela olhou para baixo, evitando olhar nos nossos olhos, e continuou: - Não... Eu vou embora mesmo. Meus pais resolveram se mudar para cidade grande, onde mora meu tio. O que? Eu não estava acreditando naquilo. Assim? Tão de repente? Do nada? Não é possível! E o pior é ninguém parecia ter notado a estupidez daquela história. Todos pareciam achar o máximo morar na cidade grande. E eu tive que perguntar: - Mas por que vocês vão se mudar?! Um breve momento de silêncio... - Niiiina! Já está tarde! Vem já para dentro! - Minha mãe já está me chamando. Depois eu falo com vocês - disse ela, como se não quisesse mais falar sobre o assunto. Deu um passo para trás, se virou e foi embora. Minha cabeça estava repleta de perguntas sem respostas. Ainda estava tentando entender o que tinha acabado de acontecer, quando alguém interrompeu meus pensamentos: - Bob! Você está bem? - perguntou Dudu. - Ele está triste porque a namorada dele vai embora - respondeu João. Todos começaram a rir. - Ela não é minha namorada! E é claro que todos os outros amigos que ali estavam não perderam a oportunidade, e logo começaram a cantar, em coro: - Tá namorando! Tá namorando! Sob a espetacular pressão que um bando de garotos é capaz de fazer e impossibilitado de qualquer reação que pudesse salvar minha reputação, fiz a única coisa digna que um homem podia fazer: me levantei e fuji correndo para casa. Passei o resto do dia pensando em tudo aquilo. Pensando no que ela havia dito. Pensando no ódio que fiquei dos outros garotos. Afinal, ela não era mesmo minha namorada! Nem gostava dela!... Enfim, pelo menos em casa eu estaria a salvo. Bom, pelo menos foi o que pensei, até a hora do jantar. - Bob, eu encontrei com a mãe da Nina hoje na feira - disse minha mãe, enquanto enchia meu prato com purê de batatas e legumes. - E ela me disse que vão se mudar, você sabia disso? Que ótimo, pensei. O mundo inteiro parece que já sabe da notícia. Só falta o mundo inteiro saber também que eu fugi correndo para casa hoje... - Sabia... - Puxa... que triste, não é mesmo? E vocês ainda faziam um casalzinho tão lindo! Você se lembra daquela festa quando... Espera um pouco. Casalzinho?! Que história é essa de casalzinho?! Uma coisa era os meus colegas me enchendo a paciência, mas agora a minha própria mãe?! Era humilhação demais! - Você não está triste porque sua amiguinha vai embora, Bob? - Hum... não! - Você não está triste? Pobrezinha... parece que ela está muito mal com tudo isso. - Olha, na verdade eu nem sei porque todo esse drama, sabia? Afinal, ela vai para cidade grande, e lá tem muito mais coisa legal para fazer do que aqui! E além do mais, eu tenho certeza que ela vai conhecer novos amigos e daqui um tempo nem vai se lembrar da gente! Acho que meus pais e meus irmãos ficaram surpresos ao me verem dizer aquilo. E ninguém mais falou sobre isso durante o jantar. No dia seguinte os garotos continuavam me atormentando. Eu olhava para Nina e não sabia direito o que estava sentindo. Percebi então que eu não estava com ódio só dos garotos por ficarem me provocando, estava com ódio dela. Afinal, era tudo culpa dela. E então, meio que sem querer por vontade própria, comecei a evitar falar com ela. Passou uma semana e nossa amizada estava em frangalhos. Mal nos falamos durante esses dias e todo o resto do mundo insistia em dizer que eu "to namorando!". Que situação... Até que certa noite, eu não sei porquê, eu não conseguia dormir. Me levantei e fui até a cozinha. Meus pais conversavam na sala e escutei o nome "Nina". Me escondi no corredor e fiquei ouvindo a conversa. - É, querido. Parece que a situação deles está muito complicada mesmo. A mãe da Nina me contou que eles já não têm mais opção senão largar tudo e ir trabalhar com o irmão dela, na cidade grande. Eu estava parado, quieto e com medo. Ouvindo aquilo, algumas coisas começavam a fazer sentido na minha cabeça. - E para piorar, ele começou a beber. Outro dia chegou bêbado em casa. Tiveram uma briga daquelas. E tenho pena da Nina, porque foi ela quem teve que socorrer a mãe. De repente eu senti que não conhecia mais o mundo a minha volta. Tudo parecia fazer sentido agora, ao mesmo tempo que não fazia sentido algum. - Ela me disse que eles já não estão mais se entendendo. Já estavam brigando quase todos os dias. E ela acha que essa mudança vai ajudar a melhorar um pouco as coisas. Por isso decidiram antecipar a mudança para depois de amanhã. Depois de amanhã?! Não! Não é possível! Foi tudo tão rápido... E agora, o que eu faço? No dia seguinte tentei falar com a Nina, mas não a encontrava em lugar algum. E quando a encontrava, ou estava com os amigos ou com seus pais. E eu ainda não queria ser visto com ela por causa daquela história de que ela era minha namorada. Passaram as horas e o dia da partida finalmente tinha chegado. Algumas pessoas estavam reunidas em frente da casa dela para a despedida. Estavam todos lá: meus pais, os vizinhos, os amigos, inclusive aqueles que insistiam em me provocar: "Tá namorando! Tá namorando!". A única que eu ainda não tinha visto era a Nina. Cansado das provocações, decidi me afastar um pouco e me sentei na velha e boa calçada. Comecei a olhar para a rua, para as casas, para os postes... e me lembrei dos bons tempos que passamos ali, na nossa rua. De repente, uma voz atrás de mim: - Bob... Era ela. E eu não sabia o que fazer. Olhei para os meus colegas e... ah não! Eles já tinham visto a gente! E estavam com aquele sorrisinho irritante no rosto, fazendo piadinhas sobre nós. Me levantei então e disse: - Nina! Você tinha que aparecer assim, tão de repente, do nada?! E foi aí que aconteceu. Ela olhou para baixo e eu pude ver a lágrima caindo e manchando a calçada, bem no lugar onde costumávamos ficar sentados. Eu nunca tinha visto ela chorar antes. Pelo menos, não daquele jeito. Do jeito silencioso. E de repente eu finalmente entendi que dessa vez a sua mãe não iria chamá-la para voltar para casa. Dessa vez ela iria embora e eu não a veria mais no dia seguinte. E não tive tempo para pensar em nada, nem sabia o que dizer. Na verdade, até hoje eu não sei. Escutei sua mãe chamando e então ela foi se afastando, aos poucos. Levantou a cabeça e olhou nos meus olhos. Não pude ouvir, mas seus lábios quase diziam "Desculpa...". Ela se virou e correu em direção ao carro, enxugando as lágrimas. E essa foi a última vez que a vi. E enquanto tentava entender a dor que sentia, só consegui fazer uma coisa: eu disse baixinho "te vejo amanhã". Nunca mais brinquei naquele trecho da rua, nem sentei na nossa calçada. E assim, o que parecia ter ficado, na verdade, foi junto com ela. Mas o mais engraçado é que o que parecia ter ido embora, na verdade, foi o que realmente ficou. Foi uma época estranha. Uma época de mudanças. Dentro e distante de nós. Uma época em que todos pareciam tentar entender o porquê das coisas. Tentamos rir, quando na verdade queremos chorar. Tentamos descobrir a verdade por trás dos nossos sentimentos. E, de fato, nós tentamos e ficamos cada vez mais perdidos. E enquanto adultos tentavam encontrar a si mesmos em lugares tão distantes, meninas choravam porque sabiam que o seu mundo nunca mais seria o mesmo... E meninos, que até então não sabiam de absolutamente nada, descobriam o amor à última vista.

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Comments

Gu
13/02/2006
Nossa!.. Ficou bem maior do que eu queria! Maus aí por abusar da paciencia de voces! hehehehe :] Mas resolvi contar uma historinha, soh pra variar um poukinho. Espero que tenham gostado! Bjos e abraços! Gu
Edna
16/02/2006
Adorei sua historinha moço!!! Pelo que pude ver sua imaginação continua afiada... ;) Resolvi deixar um comentario só pra você num achar que ninguém leu... é que o povo é preguiçoso mesmo... Beijokas P.S.: Aguardo mais historinhas, viu??? hehehe